domingo, 30 de agosto de 2009

Crítica de Antônio Hohlfeldt - agosto/2009

Reencontro com o fascínio da cantiga infantil

Felizmente, vez por outra, um diretor de teatro infantil se dá conta da existência de um verdadeiro tesouro na cultura popular e resolve apelar para ela na idealização de um espetáculo. Dificilmente o resultado é ruim. Aliás, a inspiração de autores infantis no riquíssimo e variado folclore brasileiro tem tradição desde o século XIX. No início do século XX, foi Monteiro Lobato quem renovou essa perspectiva. Na dramaturgia infantil, Maria Clara Machado revisitou estas fontes. Agora, temos um espetáculo criativo, inteligente e sensível, em cartaz no Teatro de Câmara. É uma reposição, pois se trata de um trabalho estreado há alguns anos, mas equivale a uma estreia: Canto de cravo e rosa, direção de Jessé Oliveira e dramaturgia de Viviane Junguero, também uma das intérpretes.

A ideia de Viviane é simples e eficiente: a partir das cantigas de roda, partindo-se da conhecida melodia que fala da relação entre o Cravo e a Rosa, esboça-se uma trama que envolve outras flores e bichos do jardim. Cravo e Rosa cantam, enleados, para o ciúmes e a inveja da Aranha que, para separar a ambos, inventa uma história junto ao Sapo. A partir de então, o enredo se desenvolve com simplicidade mas eficiência, contando, para isso, com um elenco de primeiríssima qualidade, não apenas do ponto de vista de suas interpretações, em sentido estrito, quanto de sua variada potencialidade, porque todos interpretam, tocam instrumentos musicais, cantam e dançam, com destaque para Ana Cláudia Bernarechi, que se ocupa de um trompete.

Não sei o que mais me encanta neste trabalho: se a boa ideia do enredo, de Viviane Junguero; se a direção eficiente de Jessé Oliveira, que escolheu a dedo cada um dos intérpretes (e não deve ter sido fácil, diante das necessidades que se tinha pela frente). Os instrumentos são variados, o espaço cênico de Élcio Rossini, embora deixe a cena aparentemente vazia, sublinha a idealização de uma teia de aranha em que Ana Cláudia se desdobra em manobras tentaculares. Por fim, os coloridos figurinos de Raquel Cappelletto e as lindíssimas máscaras de Sayô Martins: tudo isso faz de Canto de Cravo e Rosa um espetáculo de exceção, em que tudo é bem cuidado, como a excelente preparação vocal de Marlene Goidanich, a coreografia bem desenvolvida, o preparo de ginástica e malabarismo de todos os atores, e assim por diante.

Viviane Junguero, que vive a Rosa, é uma atriz que surpreende a cada momento: evidencia preparo de balé, tem excelente dicção e sua voz apresenta sonoridade e melodia encantadoras. O único reparo que faria é quanto a sua máscara facial, que às vezes me parece um pouco forçada ou artificial, desnecessariamente. Ana Cláudia Bernarecki se desdobra para “cantar desafinada”, o que é muito engraçado; Diego Neimar, Éderson Santos, Ravena Dutra e Rodrigo Márquez completam o elenco, numa harmonia que é muito difícil de se encontrar num conjunto. Tudo está, enfim, nos seus lugares; cada movimento está medido e calculado, levando o ator justamente ao lugar em que deveria estar; potência de voz, entrada das músicas, conjunto na dança e no canto – eis aí um espetáculo verdadeiramente diferente, que atesta, uma vez mais, o detalhismo que Jessé Oliveira costuma dar a todos os seus trabalhos.

Para completar, o belo acabamento do programa da peça. Trata-se de material raro, no seu preparo, no seu cuidado e no seu acabamento, que muito poucas vezes encontramos em produções locais. Teve razão o júri do Fumproarte em conceder ao trabalho um financiamento. Este merece. E merece mais público, ao longo de sua temporada, que vai até o próximo mês. Desde logo, é dos melhores trabalhos que se tem visto nos últimos tempos. Parabéns.

Crítica publicada no Jornal do Comércio do dia 28 de agosto de 2009.
Antônio Hohlfeldt é jornalista, escritor, professor universitário e político brasileiro filiado ao PMDB. Foi vereador na capital gaúcha por quase vinte anos e vice-governador do Rio Grande do Sul durante o mandato de Germano Rigotto. Atualmente é professor na Faculdade de Comunicação Social da PUCRS. É Doutor em Letras. Saiba mais, clicando aqui.

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